quarta-feira, 15 de junho de 2016

A Topada



– Ai! – Gritou o homem e em seguida se conteve para não xingar a mãe da cadeira.

Foi um breve momento de distração, um movimento mal calculado, um instante em que seu pé esquerdo, como se possuísse vontade própria, deu um beijo certeiro, daqueles roubados e estalados, no pé da cadeira da sala de jantar.
 

O homem não aguentou. A mãe da cadeira se livrou da ofensa, mas alguns palavrões foram balbuciados involuntariamente. Perdoemo-lo, pois foi uma topada daquelas que doem tanto que nem mesmo um homem santo conseguiria manter a postura.

A dor veio instantaneamente e percorreu seu corpo da ponta dos pés até a cabeça e quando chegou nesta, retirou dela qualquer resquício de racionalidade. Após a topada, o homem sentiu um misto de inconformismo e raiva.

Sem pensar, impulsionado pela agonia, na vã tentativa de descontar a agressão sofrida, ele utilizou o seu pé direito para chutar o sofá. Justamente aquele pobre objeto que não teve culpa alguma do ocorrido. De qualquer forma, o sofá não deixou barato. Isaac Newton já dizia que a toda ação há sempre uma reação oposta e de igual intensidade, e o sofá não teria a audácia de negar os fundamentos da mecânica. O pé direito do homem doeu... Mas doeu tanto que ele até se esqueceu da dor no pé esquerdo.

Chutar o sofá, além de não amenizar qualquer sofrimento, o obrigou a usar, ao invés de uma só, duas compressas de gelo.
 

Enfim o homem aprendeu: a vingança não compensa.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Hasta la vista, Baby - Relatos de um desconectado - Parte 4



Eu me lembro de muitas coisas da minha mais tenra infância, muitas mesmo. A imagem em movimento mais antiga que habita a minha memória consciente é uma em que eu chego num salão e vejo um grande desenho de um macaco em um papel colado na parede e debaixo do macaco tinha uma cadeira. Eu fui correndo, subi na cadeira e pousei pra uma foto. A foto está lá guardada até hoje e acho que ela ajudou a fazer com que essa memória ficasse gravada, pois de tempos em tempos, sempre que eu via a foto, a memória era reativada. Quantos anos eu tinha? Apenas um ano. Aliás, esse macaco era parte da decoração da festa do meu primeiro aniversário.

E posso citar várias outras memórias muito antigas, de viagens que fiz quando eu tinha apenas dois anos (lembro em especial de uma para Teresópolis, onde havia uma bota azul que eu calçava, um papai me ajudando a atravessar um rio que não molhava meus pés, pois estavam protegidos pela bota azul), de lembranças vivas do meu avô que morreu quando eu tinha 4 anos, da minha mãe amamentando meu irmão que é só dois anos mais novo que eu e uma em especial que é o motivo de eu estar aqui falando dessas memórias: o dia em que eu cismei, me debrucei sobre a pia da cozinha pra poder arremessar minha chupeta na lixeira. Minha mãe me disse que larguei a chupeta com 3 anos, então essa cena ocorreu em 1982. E o engraçado dessa memória é que não lembro apenas do ato em si, do descarte de um objeto querido, lembro do meu sentimento de ter jogado minha querida chupeta azul fora. “Por que eu fiz isso? Eu não queria jogar fora! Buá!” Sim, chorei, pois deu uma sensação horrível de vazio e arrependimento! E agora, o que será de mim sem a minha “pepetinha”? Tinha visita lá em casa. Lembro-me de gente – que não eram meus pais, acho que era o Marcio, padrinho do meu irmão, mas provavelmente ninguém, além de mim, vai lembrar desse dia pra confirmar ou não minha versão da história – me falando: “parabéns, isso aí, já é um rapazinho”, coisas do tipo.

Então minhas memórias sobre a chupeta são: 1) Subi na pia e joguei a chupeta na lixeira; 2) Ela era azul e o bico era amarelo; 3) Pessoas lá em casa me incentivaram a fazer o descarte e não foram só os meus pais; 4) Eu me senti muito arrependido e chorei. E depois, durante o resto da minha vida, eu senti a mesma coisa algumas outras vezes, um vazio após largar algo que eu gostava muito, mas precisava largar para o meu bem. Foram elas: a) Quando larguei jogos viciantes online; b) quando larguei o cigarro; c) quando exclui minhas contas nas redes sociais, especialmente meu Facebook.

Com relação ao jogos, foi fácil. O vazio foi bem repentino e não durou quase nada. Com relação ao cigarro, a sensação foi muito parecida, principalmente quando eu joguei o maço no lixo, mas também durou pouco e a associação com a chupeta não durou muito, pois outro maço de cigarro estaria disponível na próxima esquina, caso eu viesse a me arrepender (e muitas vezes “a próxima esquina” aparecia algumas horas depois e lá estava eu fumando de novo. Tentei parar algumas vezes e só consegui efetivamente em 2013 e estou livre dele até hoje).

Porém com relação ao Facebook, item “C” acima, a sensação “chupeta” ocorreu hoje, dia 12 de agosto de 2015, quando eu fui verificar se minha conta já havia sido excluída, pois eu sabia que demoraria 15 dias para efetivar meu pedido de exclusão, e eu não lembrava exatamente quando eu havia feito e descobri que sim, ela já havia sumido do mapa, definitivamente, forever. E a sensação voltou. A mesma da chupeta. Um vazio estranho, que quando somos crianças de 3 anos choramos sem travas, mas agora, adultos moldados e limitados, apenas sentimos. Eu queria excluir minha conta, precisava que ela sumisse, e de fato estou bem sem Facebook, mas mesmo assim me senti mal por um longo período. É estranho como os sentimentos simplesmente veem e não controlamos, apenas podemos tentar entendê-los pra aprendermos a lidar com eles.

Definitivamente, hoje foi como reviver 1982. Foi jogar minha chupeta no lixo. Foi relembrar que tenho capacidade de tomar decisões que não tem como desfazer. Então, Face, pra você tenho apenas uma última mensagem: Hasta la vista, Baby. E ao contrário da minha chupeta azul, não guardo nenhuma memória carinhosa de você, assim como não guardo dos jogos ou do cigarro. Mais uma página virada. Mais um tijolinho na minha desconexão.

Aguardem os próximos relatos.


quinta-feira, 30 de julho de 2015

Apocalipse Zumbi - Relatos de um desconectado - Parte 3

Pra quem ainda não assistiu, recomendo que assistam a série The Walking Dead. Eu nunca fui muito fã de filmes de zumbi, mas achei essa série sensacional. Nela os caminhantes mortos, em diversos momentos, se tornam apenas pano de fundo pra contar uma história de instigantes interações humanas que se agravam e ganham enorme complexidade a partir do catastrófico apocalipse zumbi.

Enquanto eu assistia as cinco temporadas, eu pensava "e se aconte- cesse um apocalipse?". Não imaginava um apocalipse zumbi, claro que não, mas um e- vento catastrófico que obrigasse a humanidade, com seus bilhões de espécimes, a lutar pela sobrevivência como nun- ca antes na história. E sabemos que as chances de acontecer um evento que abale a vida na Terra não são pequenas, principalmente por causa da instabilidade e complexidade cada vez maior das relações humanas e da atual dependência da energia elétrica e da tecnologia. Por que eu falo isso? Porque, por exemplo, em 1859 ocorreu uma tempestade solar de grande magnitude  e os estragos que ela ocasionou na época não foram muitos, o principal foi o fato dos postos de telégrafo terem se incendiado. Ninguém morreu por isso. E se ela ocorresse hoje? Os efeitos seriam catastróficos. Estima-se que muitos milhões de pessoas, ou até bilhões morreriam, pois a rede de distribuição de energia entraria em colapso e sem energia hoje em dia não teríamos água e nem alimentos suficientes para todos, ou seja, adeus sociedade como conhecemos. Demoraríamos anos, talvez décadas, pra nos recuperar e enquanto isso as pessoas iam morrendo e morrendo e morrendo.

Mesmo diante de possi- bilidades reais de catás- trofes apocalípticas que fariam as cenas de The Walking Dead se tor- narem reais, exceto pelos zumbis, eu prefiro não pensar em nada disso. Acho que previsões pes- simistas devem ser con- sideradas sim, até pra conseguirmos reagir aos piores cenários, mas a vida precisa seguir e não adianta sofrer por antecedência.

Por outro lado, depois que me desconectei das redes sociais e deixei o smartphone de lado, comecei a ver zumbis de verdade e percebi que antes eu também era um deles. Isso tem me deixado realmente preocupado, pois é o mal que está ocorrendo agora, bem de baixo de nossos narizes, mas poucos estão percebendo. Embora o sol não tenha lançado sua fúria contra a Terra, também não tenha caído nenhum meteoro, não tenha ocorrido um terremoto monstruoso e nem mesmo um vulcão tenha lançado seu fluxo piroclástico na estratosfera, a sociedade está virando zumbi. Sim, tipo os de The Walking Dead. Zumbis retardados que não tiram os olhos e os dedos dos celulares, viciados e dependentes deste objeto, que não vivem o agora. Eles simplesmente não estão presentes. Os corpos deles estão bem na sua frente, mas somente uma pequena parcela das mentes está ali, a outra está "zumbizando" em outro local.  

A humanidade já está numa espécie de apocalipse zumbi, dominada por essa tecnologia e grande parte está escravizada, incapaz de viver a vida real. Somente a desconexão poderá nos salvar? Eu, particularmente, passei a lutar e defender um mundo mais humano e menos conectado. E você?

Vim aqui pra atualizar e colocar uma ilustração que vi hoje (05/07/2016) e que se encaixa perfeitamente no texto acima.



Sobre o tema temos também esse vídeo:



Aguardem os próximos relatos.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

O tijolinho - Another little brick in the wall - Relatos de um desconectado - Parte 2



Os primeiros celulares eram enormes e não foi à toa eles terem sido apelidados de tijolões. E o primeiro celular vendido no Brasil era o tijolão clássico.

E se levarmos em consideração os modelos mais antigos, podemos dizer que o tijolão tinha um design inovador. Vejam como o sujeito abaixo exala glamour com seu moderníssimo celular oitentista. Muita ostentação, não é mesmo?

O tempo passou, a tecnologia evoluiu e surgiram os aparelhos digitais (sim, os primeiros celulares eram analógicos), que eram bem menores, mas mesmo assim grandes o suficiente para receberem a alcunha de "tijolinhos". O primeiro tijolinho que eu tive foi o da figura a seguir. Depois, quando os aparelhos diminuíram ainda mais, ele foi rebatizado de tijolão. E esse era "o aparelho dos aparelhos", pois diferentemente dos retângulos de hoje em dia que caem no chão e quebram as telas, os tijolões caíam no chão e quebravam o chão.




Pouco tempo depois surgiu o aparelho que foi um dos maiores sucessos de vendas da história, o verdadeiro tijolinho, que era esse Nokia abaixo e que muito provavelmente você, caso tenha mais que 25 anos, já teve algum parecido:

O tempo passou e até o pequeno celular acima foi depois confundido com tijolão, na medida em que os aparelhos ficavam cada vez menores e menores e menores. O que eu me lembro de ter marcado época neste estilo de "pequenez", foi esse modelo da Panasonic:

Eu mesmo tive um aparelho bem pequeno e acho que foi um dos mais legais que eu tive até hoje, embora a qualidade dele em termos de bateria e resistência não chegue nem perto de um Nokia. 

E no ramo dos celulares com flip, a estrela maior, com direito a trocadilho, arrisco a dizer que foi o Star Tac da Motorola, um aparelho analógico de muito sucesso que resistiu ao tempo de forma heroica, sendo sucesso de vendas, mesmo numa época em que começavam a surgir no mercado muitos outros modelos digitais mais modernos. Certamente o design e o fato de ser flip fizeram o Star Tac resistir por tanto tempo (1996 a 2003). Ele foi o celular ostentação do tempo dele. E vou ser sincero, eu queria um, principalmente pelo flip, pois atender uma chamada e desligar na  cara de alguém é uma experiência única. Pena que nunca tive grana pra comprar um.

Nesse ramo de flip a Motorola emplacou depois outros vários modelos mais modernos e de muito sucesso, que foram também símbolos de status e artigo de ostentação nos anos 2000. O V3 foi um deles. 

Mas como eu sempre fui fã do tijolinho da Nokia, quando resolvi comprar um celular de flip escolhi um da empresa finlandesa. Meu Nokia flip foi comprado em 2007 e já era usado (meu irmão foi o primeiro dono). Hoje, em 2015, nem existem mais no mercado brasileiro celulares novos de flip, mas guardei o meu e agora voltei a usá-lo.


Estou de novo com um celular pequeno e gostoso de usar (principalmente na hora de desligar na cara dos chatos), justamente quando a humanidade sofre com a "ditadura" da tela grande e dos celulares "quadrados" (não pensem que eu não sei que eles são retangulares, ok?), todos praticamente iguais. E por que voltei a usar? Porque eu estava viciado nos tais smartphones e esse vício estava me fazendo muito mal.

"Tudo bem, Sandro, mas pra que esse papo nostálgico sobre celulares?". Bom, na verdade estou aqui só pra dizer que estou super feliz com meu "tijolinho". Aliás, é erro chamar meu atual celular de tijolinho. Primeiro porque é um celular de flip que nunca foi chamado de tijolinho e segundo porque se ele fosse um tijolinho, o que seriam os celulares de hoje em dia? Another big bricks in the wall? Olhem só a foto abaixo:



Como podem notar, a diferença de tamanho é muito grande e isso faz com que a experiência de levar somente o pequeno celular no bolso seja gratificante.

Então, pra resumir a postagem, vamos às vantagens de ter feito o downgrade de celular, fruto da minha desconexão.

- Pra começar, me mantenho firme e desconectado, me livrando aos poucos do vício de a cada dois minutos arrastar os dedos no retângulo luminoso pra ver se tem novas notificações.

- Consigo almoçar prestando atenção na comida, sem olhar feed no Facebook.

- Consigo chegar em casa, sentar no sofá e prestar atenção nas pessoas, sem ter que antes responder às mensagens no WhatsApp ou passar pelos grupos pra ler o que esteve rolando enquanto eu estava dirigindo.

- Posso decidir o caminho que "der na telha", me livrando das dicas furadas do Waze (ok, o Waze já me salvou várias vezes dos engarrafamentos, mas estou sobrevivendo sem ele).

- Cade meu celular? Sim, está no bolso, mas não consigo perceber. Ótimo!

- Descobri que conversar em tempo real, sem ser por texto ou áudio no WhatsApp, é bem legal. É um jeito interessante de se conversar, que eu nunca gostei muito, mas que agora estou aprendendo a valorizar.

Admito que sinto falta das facilidades dos bons aplicativos, mas em prol de uma vida mais humana e vivida de forma real, vou me adaptar e ficar sem essas facilidades. A própria agenda de contatos e sincronização online é algo que não dá pra acreditar que não existia antes!

Pra finalizar, posso dizer que a troca de celular, como parte fundamental do meu plano de desconexão, está sendo uma etapa bem legal, mas é apenas um "tijolinho" nesse caminho para um mundo desconectado. Another little brick in the wall.

Aguardem os próximos relatos.






quinta-feira, 23 de julho de 2015

O dia D, de Desconexão - Relatos de um desconectado - Parte 1

Hoje, 23 de julho de 2015, me desconectei. Facebook, Twitter, WhatsApp, Instagram, Google +, grupos de e-mail, assinaturas de feeds, tudo cancelado (Meu padim ciço, quanta coisa! [inútil]). Meu celular, um belo smartphone, foi trocado por um que nem câmera tem e nele, além de falar, só consigo usar calculadora, brincar no jogo da cobrinha e trocar SMS.

E aqui estou, conectado ao meu blog, mas tenham certeza, que embora pareça paradoxal, um desconectado acessando o blog, este será o meu único e exclusivo meio de conexão eletrônica (espero me conectar a outras coisas não eletrônicas que cito em seguida) e só estou acessando este blog pra contar ao mundo a minha experiência nesta nova vida, desligado de todos os eletrônicos que estão (ou estavam) me escravizando. É um vício. Uma doença que tomou conta da humanidade. Vou contar um pouco de como será essa minha nova vida real, longe desses equipamentos e redes que nos consomem e nos fazem esquecer a nossa natureza humana. Combinei comigo mesmo que posso escrever aqui quando eu estiver com vontade, entretanto não posso ultrapassar a cota de uma hora por dia.

Acho que a minha principal motivação de escrever aqui é a possibilidade de ajudar pessoas que assim como eu querem se desconectar. Eu procurei relatos na internet e não achei. Eu busquei ajuda e não vi muita coisa. Então, aqui estou eu, um desconectado que vai contar um pouco, sempre que possível, como é viver como sempre se viveu desde que o ser humano começou a caminhar sobre este planeta, se relacionando com coisas vivas e não com coisas.

Minhas novas conexão serão com a minha mulher, com meus filhos, com a natureza, com a música e  com os amigos. Principalmente essas cinco conexões. Quanto eu deixei de conversar com o meu amor por estar vendo discussões políticas no Facebook? Quanto eu perdi do crescimento dos meus filhos por estar acompanhando uma hashtag no Twitter? Quanto eu deixei de sentir a natureza e beneficiar do seu poder e de sua beleza por estar lendo discussões na lista de e-mail do meu trabalho? Quanto tempo eu deixei de tocar violão, de compor uma nova música, de escrever uma letra legal, por estar esfregando o dedo na tela de um retângulo luminoso? Perdi muito tempo, meus amigos, muito. Mas já chega. Agora não mais. Hoje é o dia do recomeço, do renascimento. Voltarei aqui pra contar mais pra vocês.

Desejem-me sorte e aguardem os próximos relatos.


quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Uma novela digna da Bienal do Livro



Olá, pessoal. Primeiramente eu gostaria de me apresentar. Meu prenome é Chato e meu sobrenome é Chatice. Sou um autêntico herdeiro da família dos chatos e tenho orgulho de pertencer. Bom, sendo sincero, às vezes esta herança me causa alguns inconvenientes, pois seria melhor gostar de tudo e me incomodar menos com as coisas chatas da vida, mas de forma alguma sinto vontade de renegar meus laços familiares. Eu jamais poderia desdizer mamãe, que desde que eu era pequeno me dizia “você é um chatinho”. Ela tinha razão e até hoje agradeço de coração à mulher extraordinária que ajudou a construir o meu caráter fundamentado no que há de mais profundo na natureza da chatice.

E agora que todos vocês já sabem que este que vos escreve é um chato, – mais do que de carteirinha, mas de sangue – fiquem sabendo também que pouquíssimas coisas desta vida o agradam e que uma dessas poucas coisas – mesmo sem saber explicar muito bem o porquê – é a literatura.

Então aconteceu que o Chato Chatice, eu, resolvi visitar a Bienal do Livro no Rio de Janeiro. A decisão foi difícil de ser tomada porque, afinal, é chato sair de casa e perder um dia do final de semana com programas que me fazem sair da rotina, – rotina esta que, aliás, também é chata à beça – mas para ir à bienal valeria a pena... É um encontro literário que atrai pessoas de todo o Brasil, teria todos os títulos que eu poderia imaginar, uma oportunidade para conhecer meus amigos autores, enfim, eu tinha que ir.

A visita aconteceu no dia sete de setembro, aquele feriado chato de independência do Brasil, onde se faz uma palhaçada chata qualquer pra comemorar a data mais mentirosa da qual se tem notícia. E pra piorar, no dia sete de setembro deste ano ainda havia uns chatos protestando e quebrando tudo. Perdoem-me os que gostam de desfile militar – tocando Anitta ou não –  e os que gostam de manifestações populares, mas eu não gosto. Lembrem-se que eu sou um chato que não gosta de (quase) nada. Isto está no sangue, relevem, por favor.

Eu não queria ir sozinho, afinal, é chato sair sozinho de casa. Um mala de um amigo meu disse que ia comigo, mas furou com uma desculpa esfarrapada. Então a chata da minha mulher foi. (Amor, você é chata, mas eu te amo. Afinal, mulher de chato, chatinha é). E lá fomos nós... E assim começou a saga...

Quem já foi à Barra da Tijuca sabe como o trânsito de lá está cada vez mais deliciosamente chato. É uma “maravilha” demorar horas pra percorrer poucos quilômetros. Em dia de bienal, então, o trânsito simplesmente se transforma em algo tão chato que nem mesmo eu, o mestre da chatice, consigo descrever.

Era como se todos os carros do Rio de Janeiro, quiçá do Brasil, resolvessem passear na Barra, mais especificamente, passear nos arredores do Rio Centro. A vida de chatice me ensinou uma coisa: Murphy não criou uma regra – que admite exceções – ele criou uma lei e sendo lei, não há exceção, portanto, o inevitável aconteceu: o que já estava ruim piorou.

Quem me conhece sabe do meu sentimento pelo funk carioca... Contra este estilo de meia-música (considerem este adjetivo uma espécie de elogio), eu reúno todas as minhas forças chatídicas para abominá-lo até a exaustão. Aqueles que gostam de funk, peço mais uma vez que relevem minha chatice. Aliás, não relevem coisa nenhuma. Quem gosta de funk faça-me o favor de se mudar para Plutão e livrar os meus ouvidos desta mer...  Digo, desta meia-música (prometo que qualquer dia escrevo algo para explicar por que considero o funk uma – no máximo – meia-música).

Voltando ao assunto, o que já estava ruim, obviamente, piorou. As janelas do meu carro estavam fechadas, o rádio ligado em um bom volume e ainda assim eu fui fortemente importunado por um sujeito que ouvia às alturas meia-música em seu carro. Meu alento é que ele ficará surdo antes dos 50. Minha tristeza, desespero e agonia foi ficar 55 minutos e 47 segundos (isso mesmo, tempo contado. Só não deu pra pegar os centésimos, infelizmente.), só ouvindo aquela m... Meia-música. Eu não era capaz nem mesmo de ouvir minha mulher tagarelar (tudo tem um lado bom). Berrei para minha mulher e pela careta que ela fez, acho que ela ouviu:

– Se este filho de uma... Entrar na bienal, eu volto pra casa.

Era verdade, juro. Se aquela criatura fosse à bienal... Que tipo de lugar é esse que pessoas como aquela poderiam freqüentar? Não era possível um chato como eu – repito: mais do que de carteirinha, de sangue – ficar no mesmo ambiente que um energúmeno que escuta uma música que pede para que um poste caia na cabeça dele (essa foi a única meia-música que consegui entender a letra, acho que porque eu já a conhecia desde a adolescência, infelizmente). Eu olhava para os postes, os postes olhavam pra mim, eu olhava para os postes, os postes olhavam pra mim, eu olhava para os postes... E nem sequer um deles, nem unzinho, foi capaz de realizar o desejo do meio-cantor, infelizmente.

Eu tentava costurar o trânsito (meio-trânsito?) pra me afastar do inimigo, tentava ficar mais devagar até ouvir buzinas impacientes atrás de mim e nada disso fazia aquela meia-música se afastar. Era uma praga, uma doença, estava em todo lugar. Cheguei até mesmo a colocar a roda dianteira esquerda sobre o canteiro central pra fazer uma bandalha e voltar pra casa, mas a minha mulher docilmente disse que se eu fizesse aquilo ela faria dois meses de greve. Convenceu-me.

Se eu fui à bienal, então vocês já sabem, o funkeiro não foi. Em algum momento ele desapareceu. A sensação foi como contemplar um céu azul após uma tempestade. Cheguei à entrada do primeiro estacionamento e pra garantir (lembrem-se do Murphy) perguntei a um guarda se era ali mesmo. O mui amigo guarda municipal me informou que era ali sim, mas estava muito cheio e que seria melhor eu seguir um pouco (atentem-se, ele falou um pouco) mais à frente que havia um outro estacionamento mais vazio. Ótimo, obrigado.

O “um pouco mais à frente” do nosso guarda mui amigo, significou mais 37 minutos 49 segundos e 97 centésimos (isso mesmo, tempo contado. Só não consegui pegar os milésimos, infelizmente) de engarrafamento (dessa vez sem o funk, tudo tem um lado bom). E finalmente... Entrei no estacionamento! E vocês já sabem como é achar uma vaga em um grande evento ou num shopping e eu nem preciso entrar em detalhes sórdidos, não é mesmo? E se aquele papo do mui amigo de que o primeiro estacionamento estava muito cheio e que o “mais a frente” estaria vazio fosse verdade, eu sinceramente, de todo o coração, não quero nem imaginar como estava o primeiro.

Bom, foi difícil achar vaga, admito, foi duro chegar ao estacionamento, não contesto, mas pelo menos o estacionamento custava APENAS, nada mais, nada menos que R$ 18,00, eu disse DEZOITO REAIS. Tranqüilo, um preço justo e popular, digno de um evento cultural, não concordam? Mais barato que um táxi, eu acho, talvez, não sei, tenho dúvidas, não estou certo. O certo é que fui obrigado a pagar os dezoito reais. Paguei na saída, porque na chegada, a fila no guichê era um insulto.

E lá vamos nós entrar na bienal. Tem que pagar para entrar também? Sim, tem que pagar. Mais uma fila básica, aliás, básica porcaria nenhuma, uma fila desgraçada. Mas pelo menos o ingresso era baratinho... Baratinho? Mais uma piada. – Pausa para o Ctrl+C + Ctrl+V: nada mais, nada menos que R$ 18,00, eu disse DEZOITO REAIS. Tranqüilo, um preço justo e popular, digno de um evento cultural, não concordam?

Pagamos e entramos. Quem está na chuva é para se molhar. Depois de mais de duas horas do início da aventura, estávamos no pavilhão verde, corredor Q. Fui direto no estande Q29 onde eu sabia que estavam sendo vendidos livros de amigos meus que eu queria comprar para prestigiar, além de acreditar que os livros tinham um conteúdo que valeria a pena. Entretanto preciso também fazer aqui a minha crítica ao estande Q29. Não havia desconto nenhum, ZERO. Comprei dois livros e queria comprar um terceiro caso eu recebesse algum desconto, mas não rolou. Sem descontos, sem meus contos. Deixei de comprar um livro de fantasia que eu queria ler. E por falar em contos, os livros que comprei dos Ases da Literatura têm contos excelentes. Para quem se interessar, eu posso passar os pontos de venda.

Eu esperava também encontrar algum amigo ali no Q29, mas não encontrei ninguém. Infelizmente.

– Estou com fome, preciso comer – disse minha mulher.

Concordei. Paramos no primeiro quiosque que encontramos. Vendia pizza. Pedi duas fatias e dois refrigerantes. As fatias eram dois quadradinhos. Quando eu digo quadradinhos, não é porque é fofo falar no diminutivo, mas porque eram verdadeiros pedacinhos, muito pequenos, uma mistureba mal feita de mozarela, massa sem gosto e óleo de cozinha. Mas pelo menos era barato, certo? Vocês já sabem: ERRADO. Cada singelo quadradinho custava nada mais, nada menos que R$ 10,00, eu disse DEZ REAIS. Somando o gasto com os refrigerantes, lá se foram R$ 28,00 num lanchinho. Pelo preço, pelo paladar e pelo habitat, a sensação era de estar comendo um livro, literalmente.

Outra saga foi encontrar um lugar para comer sentado! De onde veio toda aquela gente esfomeada? Minha mulher quase saiu no tapa com uma velhinha para conseguir um lugar e como não havia um árbitro para decidir qual delas havia chegado primeiro, dividiram a mesa. A senhora era idosa, mas minha esposa está gestante. Fiquei de pé.

Devidamente (quase) alimentados, fomos explorar a tão falada bienal. Era gente pra tudo quanto é lado. Mas muita gente mesmo. Fiquei otimista ao ver tantas pessoas ali. Será que o Brasil tem jeito? Um povo que valoriza a cultura, é um povo feliz. Só que não. Estava absolutamente claro que grande parte estava ali só pra postar foto no Facebook pra dizer que foi. Mas nem vou entrar nesse mérito. Vamos mudar de assunto.

Meu objetivo então passou a ser um objetivo idiota: tirar uma foto no trono de ferro lá na editora Leya. Para quem não sabe, o trono de ferro é o símbolo central dos excelentes livros de fantasia de George R.R. Martin, As Crônicas de Gelo e Fogo. Quem não leu, recomendo fortemente que Leya, corrigindo, leia (piada de A praça é Nossa, mas não resisti). Cheguei ao trono e a fila dava voltas e mais voltas. Chega de fila por hoje. Maldita HBO que fez a série se popularizar. Deixa pra lá essa palhaçada de tirar foto no trono. Por favor, nunca é demais lembrar, relevem, eu sou o Chato Chatice. E agora peço que relevem mesmo, tudo bem, amigos? Nada de se mudarem para Plutão, senão eu vou ficar... Não, essa piadinha eu me recuso a fazer.

Entramos na editora Record, um estande gigantesco. Grande fila pra entrar, diga-se de passagem. Lá eu encontrei diversos livros interessantes e tinha uma boa promoção: compre 3 e ganhe 30% de desconto. Seria lindo, se não fosse a mais pura mentira. Os preços estavam inflacionados. Caros mesmo. Os livros que comprei (ah, eu tinha que comprar, não poderia ter ido à bienal sem comprar pelo menos uns cinco livros) estavam mais caros lá e com o desconto ficavam num patamar de preços facilmente encontrados numa busca no Bondfaro. Tudo ali era uma balela, um engana trouxa, engana eu.

Quando fui pagar os livros que escolhi, veio a “pegadinha”. Havia uma fila serpenteando o caixa e eu entrei no final dela para imediatamente ser cutucado pelo segurança da loja que apontou para fora do estande e disse:

– Amigo, o final da fila é lá fora.

– Desculpe, não sabia – Disse eu, enquanto seguia para o local correto.

O mui amigo segurança esqueceu de me preparar para o golpe que eu receberia ao olhar para fora. Havia nada mais, nada menos do que centenas, eu disse CENTENAS, de pessoas naquela fila. O estande deveria ter uns 30 metros ou mais de extensão e as pessoas davam três voltas pelo corredor que margeava o estande. Incrível! Foram 42 minutos 11 segundos, 68 centésimos e 746 milésimos (dessa vez tive que contar até os milésimos) naquela fila para comprar três livros. Depois disso só posso desejar que esses livros sejam os melhores livros já publicados na história humana.

– Amor, vamos para casa? – Perguntou minha esposa.

Eu juro que nunca ouvi nada mais doce e mais agradável dos lábios da minha amada. Nunca amei tanto minha mulher quanto naquele momento em que ela me convidou para voltarmos para casa. Só que para isso ainda precisávamos nos esgueirar pelos estandes, atravessar o pavilhão azul, depois o verde, desviar de milhares de pessoas alopradas que não sabem andar em linha reta, usar o banheiro (até que não tenho nada a reclamar dos banheiros. Tudo tem um lado bom) e depois, o mais importante: pagar o estacionamento!

A fila do estacionamento estava pequena (incrível!), somente umas trinta pessoas na nossa frente (o bom de ficar o dia inteiro em filas, que a gente acaba se acostumando). Mas havia um probleminha: apenas uma pessoa atendendo. Eu disse UMA pessoa atendendo. Nada mais justo, já que o estacionamento tinha um precinho popular, o evento não teria condições financeiras para arcar com gastos tão supérfluos como a contratação de mais pessoas para trabalhar nos guichês vazios, não é mesmo? Fiquei na fila por 17 minutos e... Desisti de cronometrar o resto porque, enfim, era hora de ir pra casa! E fui! Adeus bienal, adeus!

Amigos e mui amigos meus. Lembrem-se que me chamo Chato Chatice. Sou o tipo de pessoa que diz que ir à praia seria bom se não fosse o sol, a areia e a água salgada. Então Jamais, eu disse JAMAIS me chamem para voltar a uma bienal. Sinceramente, eu paguei (e caro) para ser sacaneado. Se forem lançar um livro, o façam numa livraria, eu vou e ainda compro. Se quiserem um encontro literário, combinamos em um café, ou outro lugar aprazível. Daqui pra frente eu continuarei comprando livros em qualquer lugar, mas em uma bienal? Na na ni na não... Nunca mais! Nem que a alternativa a isso seja ouvir meia-música para o resto da minha vida. Aliás, pensando bem, diante dessa difícil decisão, volto contente a uma bienal.